Extinção de condomínio na expropriação forçada
Extinção de condomínio na expropriação forçada: A evolução do CPC/1973 para o CPC/2015 e a polêmica do § 2º do art. 843 do NCPC.
Ceres Linck dos Santos, Advogada, diretora da AGADIE, Especialista em Direito Imobiliário pela Unisinos/RS, Mestranda em Direito pela PUC/SP
Introdução
Em excelente hora, o CPC/2015 veio consagrar um mecanismo processual que trazia enormes transtornos aos operadores do direito. A ferramenta instituída no CPC/73 era insuficiente para dirimir os problemas advindos do condomínio civil, quando um dos co-proprietários era executado.
Quando o bem penhorado pertencia a mais pessoas além do executado, a constrição recaía apenas sobre a fração ideal da coisa penhorada. Em se tratando de bens imóveis (hipótese mais comum), isto tinha as seguintes consequências: o licitante deveria arrematar a fração e ficaria em condomínio com outrem.
Como sabemos, o CPC/73 trazia as possibilidades de expropriação de bens por meio: (i) da Adjudicação (Art. 685-A), (ii) da Alienação por Iniciativa Particular (Art. 685-C) e (iii) da Alienação em Hasta Pública (Art. 686).
Na Alienação por Hasta Pública, o valor de arrematação podia chegar a 60% do valor de avaliação, ou seja, pressupõe-se que o arrematante teria alguma boa vantagem econômica (muito embora haja a taxa de leiloeiro, o ITBI, custos de retirada do ocupante e reforma do imóvel, muitas vezes). Assim, além dos encargos pecuniários, não havia interesse do arrematante em se tornar condômino de outrem. E se não havia para ele, menor o interesse seria nos demais casos (i) e (ii), em que o valor base é o de avaliação, reduzindo qualquer possível vantagem econômica.
Tudo isto convergia para o total desinteresse de adquirentes de bens penhorados, questão esta que é essencial ao próprio funcionamento do processo civil. Afinal, lembremos: Como o credor não pode se apropriar de bem do seu devedor por iniciativa própria para a satisfação de sua dívida, pede-se a intervenção do Estado, para que este exerça atos de expropriação patrimonial do devedor. É primordial que o Judiciário consiga transformar bens penhorados em recursos para a satisfação do crédito, porque interessa ao Estado Democrático manter a harmonia das relações interpessoais e os respectivos cumprimentos obrigacionais.
A prática jurisprudencial e a tutela do art. 655-B do CPC/73
Para tanto, o art. 655-B do CPC/1973 já viabilizava o praceamento da totalidade do imóvel de propriedade de um casal:
"Art.655-B. Tratando-se de penhora em bem indivisível, a meação do cônjuge alheio à execução recairá sobre o produto da alienação do bem".
A consequência desta hipótese normativa era a sub-rogação da meação do cônjuge não-devedor no produto da alienação. Da leitura do enunciado, depreende-se que os destinatários da norma são os co-proprietários que tinham o domínio de imóvel. Mas antes mesmo desta positivação, sagrava substanciosa jurisprudência no sentido de que os quinhões/meação ficam reservados no produto da praça, sob pena de se eternizarem os litígios judiciais[i]. Ora, se fosse praceada somente uma fração ideal de um imóvel, o credor ou terceiro que viesse adjudicá-la ou arrematá-la teria o direito (mais do que mera faculdade, o evidente interesse) de promover a extinção de condomínio. Nessa, uma vez não exercitadas as compras das frações reciprocamente entre os condôminos, o bem seria nova e necessariamente levado à praça.
A prática forense mostrou que o praceamento de somente partede um imóvel limitava drasticamente o número de pessoas motivadas, pois não é natural o interesse das pessoas em se tornarem co-proprietárias de coisas indivisíveis pela forte possibilidade de divergência acerca da destinação do bem (alugar, reformar, vender, explorar, ...). A própria existência da ação de extinção de condomínio revela a possibilidade de o condômino extinguir a coletividade da propriedade. Portanto, o sistema jurídico vem instituindo mecanismos para extinguir as co-propriedades sobre coisas indivisíveis.
Assim, o art.655-B do CPC já tinha por escopo evitaro surgimento de novos conflitos e possibilitar meios mais eficazes ao processo de execução; contudo, com campo inicial de aplicação aos condomínios existentes entre casais.
A própria Exposição de Motivos à Lei nº 11.382[ii] (que inseriu no CPC/73 a regra do art.655-B) reconhecia que:
"... quanto aos meios executórios, são sugeridas relevantíssimas mudanças. A alienação em hasta pública, de todo anacrônica e formalista, além de onerosa e demorada, apresenta-se sabidamente como a maneira menos eficaz de alcançar um justo preço para o bem expropriado".
Ode à norma do art.843 do CPC/2015
A falha do antigo sistema foi corrigida pela Lei 11.382 e aberto seu campo de aplicação no CPC/2015, especificamente pelo art. 843 do CPC/2015:
Art. 843. Tratando-se de penhora de bem indivisível, o equivalente à quota-parte do coproprietário ou do cônjuge alheio à execução recairá sobre o produto da alienação do bem.
§ 1o É reservada ao coproprietário ou ao cônjuge não executado a preferência na arrematação do bem em igualdade de condições.
§ 2o Não será levada a efeito expropriação por preço inferior ao da avaliação na qual o valor auferido seja incapaz de garantir, ao coproprietário ou ao cônjuge alheio à execução, o correspondente à sua quota-parte calculado sobre o valor da avaliação.
O art. 843 do CPC/2015 põe fim a um problema crônico das praças para os casos de penhora de frações que é a falta de licitantes. Havia raros interessados e a compra se dava por um valor extremamente baixo, por vezes, não permitindo que o débito fosse satisfeito e fazendo com que a execução prosseguisse.
Há algum tempo, a comunidade jurídica já propugnava a ampliação desta forma de extinção de condomínio na expropriação forçada. Mas muitos julgadores resistiram, entendendo que a aplicação tinha campo restrito aos bens de casais, sem levar em consideração o escopo da norma: evitar a criação de novos condomínios.
Diante da redação do art. 843 do CPC/2015, o bem penhorado que for indivisível será alienado por inteiro. A norma já teve sua aplicação determinada pelo TJRS[iii]:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. FRAUDE À EXECUÇÃO. ORIENTAÇÃO DO STJ PELO SISTEMA DE REPERCUSSÃO GERAL NO RESP 1141990-PR. 1. (...) 2. Caso sub judice em que somente após a citação e a penhora é que a escritura pública de divórcio foi levada a registro na Escrivania Imobiliária, pela qual o executado transfere a sua parte à ex-esposa, ficando em estado de insolvência. Fraude à execução caracterizada. Manutenção da penhora, com a ressalva da meação da ex-esposa quando da alienação judicial dos direitos (CPC/1973, art. 655-B; CPC/2015, art. 843, caput). 3. Recurso provido. (AGI Nº 70067737429, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 27/04/2016)
A fração pertencente ao condômino não-devedor será sub-rogada no produto da alienação, em seu valor integral, tendo-se como parâmetro o valor de avaliação.
Contudo, já encontramos um julgado do TJSP em sentido contrário:
PENHORA - Meação - Artigo 843 do C.P.C./2015 e 655-B do C.P.C/1973- A meação da cônjuge do executado deve ser calculada sobre o valor da arrematação e não da avaliação - Arrematação por valor menor ao da avaliação - Recurso provido. (Processo n. 2042351-95.2016.8.26.0000, Relator(a): Achile Alesina; 38ª Câmara de Direito Privado do TJSP; J. 18/05/2016)
Data maxima venia, esta interpretação parece afrontar a norma do §2º do art.843 do CPC, que tem o fito de preservar a propriedade daquele co-proprietário não-devedor.
Contudo, numa eventual ação de extinção de condomínio, caso não exercidas as preferências pelo valor de avaliação, o imóvel não iria à praça respeitando apenas a limitação do preço vil? Temos diferentes parâmetros limitativos para diferentes procedimentos cujo objetivo final é o mesmo?
Importante lembrar que há muito tempo está consagrado na jurisprudência o entendimento de que na ação de extinção de condomínio, os lances podem ser inferiores ao da avaliação, respeitado o preço vil[iv]. Fica aqui o convite à reflexão.
Requisitos para aplicação do art. 843 e §§ do CPC/2015:
Não há substanciais alterações do art. 655-A ao art. 843 no que tange ao objeto: O bem deve ser indivisível.
O coproprietário ou o cônjuge tem o direito de preferência na arrematação integral do bem penhorado. Esta preferência deve ser exercida nas condições do mercado, ou seja, em concorrência com uma proposta melhor de terceiro, essa prevalecerá.
Enunciado 329 do Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis fez a seguinte interpretação: "Na execução trabalhista deve ser preservada a quota parte de bem indivisível do coproprietário ou do cônjuge alheio à execução, sendo-lhe assegurado o direito de preferência na arrematação do bem em igualdade de condições". Tal enunciado é prévio à própria promulgação do CPC/2015. Fora aprovado em dezembro de 2014, no Forum de Belo Horizonte e trata do impacto do CPC no processo do trabalho. Vale lembrar que a Resolução nº 203, de 15.03.2016 exarada pelo Pleno do TST alterou a a Instrução Normativa n° 39, que dispõe sobre as normas do Código de Processo Civil de 2015 aplicáveis e inaplicáveis ao Processo do Trabalho, de forma não exaustiva. Esta resolução elencou, de forma não exauriente, os dispositivos do CPC/2015 que se aplicam e os que não se aplicam, deixando de manifestar-se expressamente acerca do art. 843 deste diploma.
José Antonio Fichtner e André Luís Monteiro sustentam a "aplicação analógica do §1º do art. 2.019 do CC de modo a tornar possível ao cônjuge ou coproprietário alheio à execução adjudicar para si o bem imóvel penhorado do qual detém a quota-parte, desde que o valor oferecido não seja inferior ao da avaliação"[v].
O § 2º do art. 843 do CPC/2015 veda a alienação quando seu produto for insuficiente para "pagar" a fração do co-proprietário não-executado. Como diz José Miguel Garcia Medina[vi], "não se admitirá a alienação do bem por valor insuficiente a assegurar ao coproprietário o cônjuge alheio à execução sua quota-parte".
Isto faz com que o valor econômico da parte do co-proprietário reste preservada; afinal, ele não terá mais a coisa em si por força de ato iniciado por outrem (credor) em face de seu condômino (devedor). Logo, o produto da hasta pública servirá para pagar a cota-parte/fração do condômino, devendo tal valor constituir, no mínimo, o valor de avaliação desta cota-parte (vide ressalva do julgado do TJSP). O que sobejar, será revertido ao executado e servirá de capital para satisfação da dívida executada.
José Antonio Fichtner e André Luís Monteiro esboçam o seguinte exemplo:
"Assim, se determinado bem imóvel de propriedade de executado casado é avaliado em R$ 2.000.000,00 e o maior lance não alcança sequer R$ 1.000.000,00, a arrematação não poderá ser concretizada. Já se o maior lance atingir, por exemplo, R$ 1.300.000,00, a arrematação poderá ser concluída, mas o valor de R$ 1.000.000,00 será revertido ao cônjuge para preservar a sua meação e apenas os R$ 300.000,00 restantes serão destinados à satisfação do direito de crédito do exequente"[vii].
Esta solução dinâmica, ao mesmo tempo em que preserva o direito do co-proprietário não-devedor, viabiliza a satisfação do crédito executado, concretizando o princípio da responsabilidade patrimonial, tão contemporizado nos últimos tempos.
Em termos procedimentais, a PENHORA é da fração pertencente ao executado, mas a HASTA PÚBLICA, do todo. A consequência será a subrogação da fração não-penhorada no produto da hasta. Esta era a mesma prática decorrente do art. 655-B do CPC/73, como ensinava o Prof. ARAKEN DE ASSIS [viii]:
"... convém relembrar que a penhora apenas sobre a meação do executado, deixando incólume a metade pertencente ao cônjuge, não elimina a incidência do art.655 §2°".
O co-proprietário não-devedor deverá ser intimado pessoalmente da penhora, para que possa exercer o direito de preferência previsto no art. 843, §1º do CPC/2015. Tal ato de intimação está previsto no art. 889, II, do CPC/2015[ix]. É condição sine qua non para a validade do ato jurídico, mas o ato processual defeituoso produzirá efeitos até a decretação da sua invalidade. Toda invalidade processual precisa ser decretada, pois o sistema das invalidades processuais é construído para que não haja invalidades. A invalidade de um ato processual é vista como solução de ultima ratio, tomada apenas quando não for possível aproveitar o ato praticado com defeito. [x]
O art.674, §2º, inc. I deixa claro que o condômino que tenha sofrido os efeitos da penhora de fração do condômino não terá direito à interposição de embargos[xi]. Fazendo-o, carecerá de interesse processual, porquanto a norma sub-roga sua parte-ideal no produto da alienação.
Feita tal breve análise, saúda-se a solução jurídica dada pelo art.843 do CPC/2015, que auxilia a instrução da execução, como diz o Prof. Cândido Rangel Dinamarco[xii], ao dispor de instrumento para a transformação do bem que responde pela obrigação em dinheiro, respeitando os princípios da igualdade e do contraditório.
Notas de rodapé
[i] "APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIRO. BEM INDIVISÍVEL. HERDEIROS. HASTA PÚBLICA. RESSALVA DE MEAÇÃO.
A ressalva da meação que toca aos herdeiros é feita com a reserva de metade do valor obtido com a hasta pública, possibilitando-se a alienação judicial da integralidade do imóvel, conforme previsão do art. 655-B do CPC.
Apelo provido". (Apelação Cível n°70022480701, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de justiça do RS, Relator: Des.Bayard Ney de Freitas Barcellos, Julgado em 17/09/2008)
"EXECUÇÃO - DÍVIDA CONTRAÍDA POR CÔNJUGE -PENHORA REALIZADA SOBRE BEM DO CASAL - EMBARGOS DE TERCEIRO - MEAÇÃO SOBRE O PRODUTO DA ARREMATAÇÃO DIANTE DA INDIVISIBILIDADE. Sendo indivisível o bem penhorado e com vistas a afastar a criação de modalidade forçada de condomínio a inviabilizar o processo de execução, diante do desestímulo de eventuais interessados à arrematação, tem- se admitido a necessidade de se levar o imóvel em sua integralidade à hasta pública, com a conseqüente alienação, assegurando-se à embargante a metade do preço alcançado, com a preservação da meação. (Apelação Cível n°1.0024.03.922136-1/001, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Edílson Fernandes, Julgado em 07/12/2004)
[ii] https://www.camara.gov.br/internet/proposicoes/chamadaExterna.html?link=https://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=270517.
[iii] No mesmo sentido, APC Nº 70068125707, 13ª CC do TJRS, Rel. Breno Pereira da Costa Vasconcellos, J. 31/03/2016.
[iv] Agravo de instrumento. Ação de extinção de condomínio entre os herdeiros e seu pai. (...) Principalmente, o preço da arrematação encontra-se depositado em juízo, de tal forma que os herdeiros, se desejassem comprar o imóvel, exercendo o direito de preferência, teriam depositado o preço da arrematação, que foi de 68% da avaliação, não caracterizando preço vil. Recurso que pode caracterizar lide temerária. Não seguimento por manifesta improcedência. (AGI Nº 70011106234, 20ª CC do TJRS, Rel.Carlos Cini Marchionatti, J. 05/03/2005).
EMBARGOS À ARREMATAÇÃO - Extinção de condomínio - Fase de cumprimento de sentença de procedência - (...) - Alegação de preço vil - Descabimento - Ausência de impugnação quando da realização do laudo de avaliação - Lance superior a 60% do valor atualizado da avaliação que não configura oferta vil ou irrisória - Precedentes - Embargos improcedentes - (...) (Processo 1008335-87.2014.8.26.0361, Rel. Salles Rossi; 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do TJSP; J. 07/10/2015)
[v] Coord. CRUZ E TUCCI, José Rogério et al. AASP e OAB/PR. p. 1312.
[vi] Novo Código de Processo Civil Comentado. 2ª ed. ebook. São Paulo: RT, Comentário ao art.843.
[vii] Idem, p. 1312.
[viii] ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 11ª. ed. São Paulo: RT, 2007. v. 1. 685 p.
[ix] Art. 889. Serão cientificados da alienação judicial, com pelo menos 5 (cinco) dias de antecedência:
(...)
II - o coproprietário de bem indivisível do qual tenha sido penhorada fração ideal;
[x] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 162.
[xi] Art. 674. Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro.
§ 1o Os embargos podem ser de terceiro proprietário, inclusive fiduciário, ou possuidor.
§ 2o Considera-se terceiro, para ajuizamento dos embargos:
I - o cônjuge ou companheiro, quando defende a posse de bens próprios ou de sua meação, ressalvado o disposto no art. 843;
[xii] Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p.139.